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A voz de quem não tem vez.

Os meus 53 anos de profissão, além de quase uma década anterior na qual trabalhei como estagiário e solicitador acadêmico, reforçaram a minha crença na advocacia e na sua importância como alicerce sólido para a construção de uma sociedade justa e igualitária.

A atividade de alguém falar em nome de outrem antecedeu a organização do Estado. O primeiro homem a emprestar a sua voz em prol de alguém foi o primeiro homem a advogar.

Essa é a origem da advocacia. Os advogados eram os “vozeiros”, falavam em nome de quem não tinha voz, daqueles que eram incapazes de defender por si os seus direitos e interesses.

Com a estruturação do Estado, a advocacia foi inserida na atividade estatal de elidir conflitos de interesses por meio da aplicação da lei, por meio do Poder Judiciário. Este é inerte, pois apenas se movimenta para solucionar um conflito se provocado pelo interessado.

No entanto, ele deve estar representado por um advogado, que exerce com exclusividade a chamada capacidade postulatória. Assim, o elo entre o cidadão e a Justiça é o bacharel. Sem a advocacia, a máquina do Poder Judiciário não se movimenta. Ausente a nossa profissão, ausente estará a Justiça.

O exercício da advocacia, ao lado de essencial para a administração da Justiça (art. 133 da Constituição federal), tem um conteúdo humanitário que a transforma numa atividade que beira o sagrado. Quem se encontra às voltas com um conflito transfere todas as suas angústias e esperanças ao advogado escolhido, tornando-o responsável pelos valores que lhe são relevantíssimos: liberdade, família, honra, patrimônio e tantos outros.

O papa Paulo VI afirmou a nosso respeito sermos, ao lado do sacerdote, os profissionais que melhor conhecem a alma humana. Séculos atrás, Voltaire já dizia que a advocacia era o mais belo estado de espírito do homem.

Com efeito, a vocação para advogar implica ter condições subjetivas peculiares para postular em nome alheio, para ser a voz de quem não tem vez.

Como a advocacia coloca o seu exercente em contato com aspectos multifacetados do ser humano – dos mais dignificantes aos mais desprezíveis –, nós aprendemos a conhecer a condição humana na sua inteireza e ela passa a constituir a matéria-prima do nosso labor. Por tal razão nos tornamos tolerantes, complacentes e compreensivos. Não somos maniqueístas. Sabemos não existir o bem ou o mal absolutos. Em todos os fatos e seres humanos há o verso e o reverso. Cumpre-nos sempre ter presente essas duas faces.

Quando somos solicitados a atuar em demandas, passamos a ser depositários das desgraças, das grandezas, da confiança e da esperança dos que nos procuram.

A sociedade, na área penal, precisa saber que o advogado não defende o crime, e sim os direitos do acusado, a sua dignidade e a sua integridade física, que em verdade constituem prerrogativas de todo e qualquer cidadão. Ninguém em sã consciência pode afirmar que jamais cometerá um crime, ou mesmo que não será injustamente acusado. Se o for, clamará por nossa presença e se esquecerá de que um dia nos considerou até cúmplices de outros acusados, nossos clientes. Essa errônea visão é haurida da própria distorção sobre a nossa missão, que impera em sociedade. Somos confundidos com o criminoso e a nossa atuação é considerada uma extensão do crime.

A incompreensão nos persegue e é histórica. Como também histórica é a nossa incompatibilidade com os regimes ditatoriais. Sem democracia e sem liberdade nos é impossível advogar. Rui Barbosa dizia que basta deixar nossa palavra livre para que o despotismo instalado não perdure. Assim, os déspotas ou os candidatos ao despotismo encaram-nos como inimigos. E com razão. Os de ontem e os de hoje, os de fora e os daqui. Napoleão Bonaparte desejou que a língua dos advogados fosse cortada. Durante as ditaduras de Vargas e a militar, os advogados foram os grandes arautos da redemocratização do País e, por isso, perseguidos pelo autoritarismo tanto político quanto social.

É preciso ficar assentado que os advogados não são juízes. Nós não avaliamos a conduta ética e moral dos clientes. Não julgamos, defendemos, especialmente sob o prisma da versão que eles nos apresentam dos fatos. Saiba-se também que não necessariamente atuamos para obter a declaração de inocência do acusado. Desejamos, sim, na hipótese da culpa provada, que seja aplicada a pena justa. Assim sendo, defender independe da nossa opinião sob a culpa de quem defendemos.

Como porta-vozes dos direitos constitucionais e legais do defendido, cumpre-nos também um papel de grande relevo. Nós revelamos, especialmente aos desprovidos de recursos materiais e culturais, que ele é portador de direitos e de garantias, até então desconhecidos. Trata-se de um paradoxo: foi preciso cometer um crime, ou ser acusado, para descobrir-se cidadão.

Como se observa, o advogado exerce uma profissão marcada pela solidariedade em prol de quem não tem voz nem vez. Postular em seu nome é uma exigência do humanismo.

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Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
O Estado de São Paulo
07 de abril de 2023

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