A sociedade precisa contribuir para que o egresso do sistema prisional não se torne um vingador implacável.
Li surpreso que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei ampliando os critérios para a decretação de prisões preventivas. O seu autor é o ministro Flávio Dino.
Não haveria nenhuma estranheza se as inovações fossem tendentes a confirmar o caráter excepcional do encarceramento provisório, dificultando-o. Haveria coerência com o princípio constitucional da presunção de inocência.
Pergunto se o ocupante da Suprema Corte deixou-se influenciar pela cultura punitiva hoje reinante. Será que ele é dos que entendem ser a prisão a panaceia para os males da criminalidade? Ele crê não haver outra resposta para o crime a não ser o encarceramento?
Tenho certeza que o ministro Flávio Dino não integra a corrente daqueles voltados para o populismo penal. No entanto, o senador…
Temo que, tal como a corrente punitivista, ele esteja olvidando o quanto é inócua a repressão pura e simples como meio de diminuir os índices de criminalidade. Infelizmente está arraigada na consciência social que o delito se combate com o rigor penal, leis e penas mais graves. A prova provada dessa falácia é que quanto mais se prende mais crime acontece. O Brasil conta com aproximadamente 650 mil presos, e as prisões continuam a ser efetuadas, mas nem por isso os níveis de delinquência diminuem.
Em face dos trágicos incêndios que atingiram o País, a reação das autoridades, inclusive do Judiciário, é a apologia das penas mais altas. Será possível que essa demagogia populista irá continuar por mais tempo? Será que nunca se terá a honestidade para se desmitificar a cadeia como solução? É uma pregação mentirosa, desonesta, enganadora e extremamente nociva à paz social.
Além de se afastar do único caminho eficaz de combate ao crime, que é o enfrentamento das causas da criminalidade, se olvida que o caótico sistema prisional brasileiro se transformou em eficiente fator criminógeno.
Ao lado dessa cultura repressiva e punitiva que a nada conduz, a não ser a maior criminalidade, como se verá, há uma imperdoável e tradicional omissão no que tange às causas do crime. A prisão não o evita pela simples razão de que ela é posterior ao seu cometimento. Caso não se ocupem das causas não se evitará as violações a direitos individuais ou coletivos. E nunca houve uma preocupação das autoridades e da própria sociedade com os fatores desencadeadores do crime.
Como exemplo podemos citar a questão do menor carente. Tivéssemos, na década de 1970, cuidado do menor abandonado, talvez hoje contássemos com um número bem menor de criminosos e chefes de organizações. Passamos a nos preocupar quando os trombadinhas começaram a nos assaltar. Preocupação não em ampará-los, e educá-los, mas apenas em puni-los. As suas necessidades não nos sensibilizavam, nós os queríamos distantes. Um secretário de Segurança chegou a recolher os menores de rua, colocou-os em ônibus e os mandou para a cidade de Camanducaia, em Minas Gerais.
Conhecidos jornalistas, de forma distorcida e nada honesta, mentiram ao dizer que eu neguei a necessidade de punição. Repeti que punir não evita o crime. A punição está na lei, assim, precisa ser aplicada. Mas parem de se enganar dizendo que se está combatendo o crime com o encarceramento.
A gravidade dessa ideologia do cárcere como panaceia para os males do crime é sensivelmente aumentada pelo sistema penitenciário, que não cumpre os seus objetivos de conceder prisões que não afrontem a dignidade dos homens e mulheres que o habitam. Ademais, não os prepara para o retorno à sociedade, com esforços para afastá-los do crime.
Quando não fosse por uma questão de humanismo e de solidariedade, dever-se-ia lembrar que os encarcerados e as encarceradas um dia voltarão ao convívio social.
Todas as carências acumuladas durante o período de aprisionamento vão se introjetando em seu (in)consciente. Carências no campo da saúde; da assistência jurídica; da alimentação, essa absolutamente insuportável; das acomodações, é inacreditável a mínima dimensão por cela para cada preso. Não é preciso falar da higiene, da violência, das organizações criminosas internas, da precariedade do ar, da ausência de lazer e de vários outros fatores de aviltamento do ser humano.
A esse acúmulo de necessidades não supridas soma-se o desprezo da sociedade pelo preso e pelo seu regresso. Na verdade, existem dois muros isolando o sistema penitenciário. Um cerca os presídios e o outro cega a sociedade que nada enxerga, ou diz que não. Basta que se encarcere e pronto. Repito, o homem e a mulher presos sairão um dia.
O Estado por sua vez não cumpre com as suas obrigações muito claras e objetivas expostas na Lei de Execuções Penais. Lei das mais avançadas e completas do mundo. Mas não cumprida. Outro exemplo dos dois Brasis: um legal e outro real. O Estado precisa deixar de investir só no cárcere e aplicar recursos na liberdade. A sociedade precisa humanizar-se, solidarizar-se e, quando não, por egoísmo, contribuir para que o egresso, em liberdade, não se torne um vingador implacável.
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Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
31 de outubro de 2024
Estadão