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           Óbvio: aquilo “Que não pode ser questionado ou discutido. = axiomático, incontestável, indiscutível, irrefutável ≠ contestável, discutível, questionável, refutável” (Priberam.org). Todavia, no Direito antônimos e sinônimos se encontram com frequência. Se misturam de tal forma que o “óbvio” se torna refutável. E quando menos se espera nos encontramos imersos em debates sobre as regras mais basilares do processo penal.

           E qual seria o problema disso? Pergunta-se. Afinal, o Direito não é uma ciência exata. Não seria por meio de debates e discussões que podemos modificar entendimentos e leis que não prestam mais a socorrer as demandas do cotidiano?

           O problema não é o debate em si. Este, quando praticado de forma adequada, certamente possui aptidão para aprimorar o ordenamento jurídico. O diálogo, na verdade, é muito bem-vindo em todas as áreas, até mesmo nas relações interpessoais.

           O problema é outro. É quando é obrigado a discutir o óbvio.

           É a recalcitrância de parcela do Poder Judiciário em desrespeitar claros textos legais e entendimentos jurisprudenciais consolidados. Por capricho, por convicções pessoais, por idiossincrasias, magistrado insistem fazer valer suas opiniões particulares, em detrimento de textos legais e pontos já pacificados pelos Tribunais Superiores.

           Tanto é que os próprios Ministro do STJ já observaram que “um número expressivo de processos com decisões que desconsideram os entendimentos já firmados pelos tribunais superiores tem chegado ao STJ, o que cria uma desorganização sistêmica, causando tumulto, sobrecarregando a corte e comprometendo a qualidade da prestação jurisdicional” (Sexta Turma pede atuação mais harmônica das instâncias ordinárias em questões já pacificadas no STJ e no STF).  

Quando isso ocorre questões realmente importantes e que merecem atenção do Judiciário não encontram o socorro merecido. As filas de processos dos Tribunais Superiores estão abarrotadas de “obviedades” para serem analisadas e, por isso, elas não andam. Sabe aquele caso de grande importância jurídica, que passa meses (até mesmo anos) sem qualquer andamento? Ele está na “sala de espera” aguardando o atendimento do “óbvio” terminar. 

 Estão nessa fila, contribuindo para a demora dos trâmites processuais, inovações legislativas de 2008. Isso mesmo, 2008. Embora longínquas, estas inovações ainda dão azo ao debate.

É o caso, por exemplo, da inclusão do artigo 396-A no Código de Processo Penal após o advento da Lei nº 11.719/2008. Antes de 2008, ao elaborar denominada defesa prévia, era uma praxe a defesa apenas arrolar as testemunhas que deveriam ser ouvidas em Juízo. O advogado se limitava a registrar na peça que o réu era inocente e que isso restaria comprovado após a instrução probatória. Nada além disso.

A referida Lei, no entanto, introduziu inovação legislativa de extrema relevância no ordenamento jurídico-processual penal, concedendo àqueles que figuram como sujeitos passivos da persecução criminal uma prerrogativa processual fundamental: o direito do acusado, mediante a apresentação da resposta à acusação, de “alegar tudo o que interesse à sua defesa“. A Lei nº 11.719/2008 consagrou, além disso, a possibilidade de o órgão julgador, à luz dos argumentos defensivos apresentados, proceder a uma reanálise crítica da viabilidade técnico-jurídica da pretensão acusatória, materializando, assim, a efetividade do contraditório e da ampla defesa.

A função da primeira defesa escrita juntada aos autos foi, portanto, ampliada. Ela deixou de ser uma manifestação de caráter meramente procedimental – ante a inexistência pretérita de mecanismo revisional análogo –, elevando-se à condição de genuíno instrumento de controle jurisdicional da acusação, ou seja, conferindo à defesa técnica a prerrogativa constitucional de evidenciar, já no limiar da persecução penal em juízo, eventuais excessos ou arbítrios perpetrados pelo aparato estatal acusatório.

Cabe ao Magistrado, portanto, fazer o cotejo entre a versão acusatória e o que foi esclarecido pela defesa em sua resposta à acusação. E caso o Juiz verifique que os fundamentos postos na defesa são aptos a ensejar a rejeição da denúncia, ou a absolvição sumária do réu, a ação penal não irá prosperar.

Ora, como se vê, trata-se de uma questão óbvia. O Ministério Público oferece a denúncia; o Juiz, antes de ouvir o acusado, a recebe e determina que o réu seja citado para apresentar a sua defesa, nos termos do art. 396-A do CPP; após, com a resposta à acusação juntada aos autos, o Magistrado verifica se é ou não o caso de dar prosseguimento ao processo.

Não há o que discutir. Essa é a regra.

Todavia, na prática não é assim…

O óbvio, lamentavelmente, precisa ser dito, pois não é raro encontrar decisões sustentando que após o réu apresentar a resposta à acusação o Magistrado não poderá mais rejeitar a inicial acusatória. Em alguns casos, essa ilegalidade só é sanada após os autos chegarem ao Superior Tribunal de Justiça (por exemplo: REsp 1318180/DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 29/05/2013; AREsp 1180826/MG, Rel. Min. Thereza de Assis Moura, Dje 08/02/2018).

Essa postura insistente de questionar regras indubitáveis, adotada por parcela significativa dos agentes públicos, transcende amplamente a tese mencionada – basta observar o volume alarmante de prisões preventivas decretadas sem fundamentação adequada. O fenômeno, aliás, não se restringe ao processo penal, mas contamina todo o ordenamento jurídico: diariamente, milhares de questões cristalinas, já pacificadas pela doutrina e jurisprudência, são submetidas a infindáveis debates nos tribunais.

           O Estado que ano após ano se desdobra para tentar cumprir as metas fiscais estipuladas pelo governo, por exemplo, gastou R$ 156,6 bilhões em 2023 com Tribunais de Justiça (leia aqui[1]). Não há como negar que se trata de um valor expressivo. E conforme a quantidade de processos e demandas judiciais – entre elas, as que discutem o óbvio – aumentam, os gastos com recursos humanos e tecnológicos necessários para movimentar essa “máquina” também se elevam com o passar do tempo. Assim, outros setores importantes do Estado, que carecem de verbas públicas, acabam ficando em segundo plano.

           O Poder Público, por sua vez, na ânsia de imputar a responsabilidade a alguém pela ocorrência desse círculo vicioso, mira os holofotes contra aqueles que buscam a efetivação de seus direitos por intermédio do processo judicial; culpa também, e com frequência, o advogado. Este é mencionado como protagonista dessa série que nunca acaba, pois costumam dizer que o advogado não para de recorrer; que ele “atrapalha” o andamento do processo.

           No entanto, nada se diz sobre a quantidade de decisões judiciais que são proferidas sem respeitar princípios fundamentais previstos tanto na Constituição Federal, como no Processo Penal. Nada se diz sobre a quantidade de decisões que apenas são reformadas perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

           Se a quantidade de recursos interpostos pelos advogados é alta, é porque hoje decisões que violam regras claras, teses óbvias, ainda precisam ser impugnadas por meio de recurso ou mediante uma ação autônoma. Ressalta-se, nesse sentido, a manifestação dos Ministros do STJ mencionada anteriormente neste texto.

           O problema de eficiência enfrentado pelo Judiciário, portanto, precisa ser analisado de uma forma holística. Não basta analisar apenas números e organizar mutirões para desaguar processos parados. É preciso verificar a causa do problema. Entender o porquê dispositivos legais que possuem a função de resguardar as garantias constitucionais de todo e qualquer indivíduo ainda são frontalmente desrespeitados. Esse é o cerne da questão.

           Enfim…

           Enquanto o óbvio precisar ser dito, todos sairão perdendo. Mas, com toda certeza, enquanto for necessário, custe o que custar, os advogados estarão aqui para dizê-lo.


[1] https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/03/01/gastos-do-brasil-com-tribunais-de-justica-e-mais-de-quatro-vezes-o-da-media-internacional-diz-tesouro.ghtml

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Por Gustavo Gasparoto
27 de maio de 2025

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