Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
Sr. presidente da Câmara, não passe à História como cúmplice do pior governo.
O homem, quando se vê diante de uma situação que o obrigue a tomar uma decisão, ou a toma ou simplesmente se omite. É evidente que se optar por agir sua ação trará consequências. No entanto, também a omissão provocará repercussões, que vão variar de acordo com a motivação de sua inércia. Aliás, há momentos em que a inércia é mais marcante e traz um maior estigma do que a decisão mesmo que errada. No caso, ela constitui crime de lesa-pátria.
A inércia adotada no caso do impeachment do atual presidente da República está sendo colocada como uma prerrogativa do presidente da Câmara dos Deputados. Ele se apoia no Regimento Interno da Casa, que lhe dá, sem consignar prazo, a possibilidade de dar seguimento ou engavetar pedidos de impedimento, como vem fazendo.
Diz ele que o regimento não o obriga a submeter os requerimentos à apreciação da Câmara, pois não há prazo para a apreciação da respectiva postulação. Realmente, não há nas normas regimentais a consignação de prazo para as providências decorrentes de um pedido. Mas a inexistência de um lapso temporal não o autoriza a engavetar os pedidos.
A norma regimental omissa cede ao civismo e ao compromisso que assumiu com a Nação quando recebeu um mandato parlamentar, outorgado por quem o elegeu.
O seu dever ético, moral e político não pode ser eximido ou dilatado no tempo por uma acomodação meramente estratégica em prol de um governante abusivamente despreparado, insensível, desprovido de humanismo, solidariedade, amor pelo próximo, senso democrático, enfim, um político portador de todos os defeitos que o tornam incompatível com o mínimo exigível para conduzir uma nação.
Os brasileiros minimamente esclarecidos, sem distinção de classe social, raça ou ideologia, mesmo aqueles hoje arrependidos de nele terem votado, chegam à dolorosa conclusão de que o Brasil não merecia Jair Bolsonaro.
Acontece que nós estamos tolhidos, impossibilitados de fazer algo que reverta essa angustiante situação. Alguns falam, outros escrevem, muitos vão às ruas, mas apenas um, absurdo dos absurdos, apenas um tem o poder de dar encaminhamento à única solução possível: tirá-lo do poder pela via constitucional do impeachment.
Parece, de forma muita nítida, estar havendo uma cumplicidade entre os dois presidentes, o da Câmara e o da República, que extrapola os limites da política. Claro, a manutenção do cargo é o desiderato primeiro. Não se tem mais dúvida de que o Parlamento, hoje, está muito mais propenso a discutir a questão do impeachment do que no passado recente. Dessa forma, o risco de seu acolhimento é real.
No entanto, o compadrio entre ambos ultrapassa as dimensões da cadeira presidencial e atinge os limites do estado de liberdade do presidente. Manter a gaveta fechada com mais de cem pedidos, agora com um último alentado e bem fundamentado pleito de impeachment, representa uma flagrante tentativa de impedir a apreciação de uma série de condutas não só representativas de crimes de responsabilidade, como de delitos comuns.
Até ontem se imaginava que tais infrações penais fossem basicamente contra a saúde pública. Mas o quadro mudou. Veio à luz do dia uma série de ações previstas como criminosas pelo Código Penal e por leis esparsas, que atingiram ou puseram em risco o erário e a coisa pública. Ações que, ademais, violam os princípios constitucionais que devem resguardar e proteger a administração, como os da moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.
Portanto, o risco de perda do mandato poderá atingir não só a sua posição de presidente da República, como também a sua própria liberdade. Assim, o engavetamento está sendo visto até mesmo como meio para sua proteção pessoal.
As suspeitas de prevaricação, corrupção e outros crimes podem constituir campo fértil para que o impeachment seja acolhido. É bem verdade que os delitos comuns não serão imputados no respectivo procedimento, mas, com certeza, terão significativo peso e influência no espírito dos julgadores, quando da avaliação que se fará sobre a manutenção ou perda do mandato presidencial, em razão do cometimento de delitos de responsabilidade.
Sr. presidente da Câmara, salve-se de uma mácula que com certeza será indelével. Não apoie um governo que não valoriza a vida, pois não se sensibiliza com a morte. Que instiga manifestações antipatrióticas e estimula a violência e a utilização de armas. Não se curve a um governo investigado pela prática de uma corrupção especialmente abominável, pois provoca a morte. A sua fidelidade ao atual presidente representa um ato de infidelidade aos interesses superiores da Nação brasileira.
Não se deixe confundir com os áulicos que, embora próximos do poder, por conivência ou omissão, instigam e estimulam as más condutas ou nada fazem, quando poderiam aconselhar, criticar ou alertar. Não passe para a História como cúmplice do pior governo da República. Não deixe que a sua omissão seja vista como uma recompensa pelo apoio que lhe foi dado para alcançar a presidência da Câmara.
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Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.