Depois das cabeças decepadas e de todo o sangue derramado nas rebeliões penitenciárias do Norte do país, no começo deste ano, pouco ou nada mudou na situação dos presídios brasileiros: nosso sistema carcerário permanece em crise e parte da sociedade continua a lançar um olhar punitivo sobre os condenados. Mas e quem está do lado de dentro? O que pensam os presidiários, afinal? É em meio a esse contexto tumultuado que surge A Estrela, uma revista feita, do começo ao fim, por mulheres e homens do cárcere.
Parte do Projeto VOZ, que reúne uma série de iniciativas com a população carcerária, a revista é resultado de aulas ministradas pela jornalista Natália Martino e pelo fotógrafo Leo Drumond dentro de centros de detenção. “Todo o processo costuma levar uma semana. Nos dois primeiros dias, temos aulas teóricas com conceitos da comunicação e oficina de fotografia e, desde o começo, já deixamos as câmeras com as pessoas para que elas possam se familiarizar”, conta Leo. A série de workshops inclui ainda oficinas de texto jornalístico, discussão de pauta e aparato para produção em vídeo.
O nome da revista, eles contam, veio por conta de um achado de muitas décadas atrás. Parceiros de trabalho há algum tempo, Leo e Natália já pensavam em criar um projeto jornalístico com presos, mas acabaram se deparando com algo parecido que fora feito nos anos 40 — o periódico A Estrela, produzido na Penitenciária Central do Distrito Federal (que na época ainda era no Rio de Janeiro). Assim, em 2014, a revista que se chamaria “Voz” adotou o mesmo nome como homenagem.
Até agora, duas edições d’A Estrela já foram publicadas. A última, realizada com as detentas da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de Rio Piracicaba, foi a primeira da história feita por mulheres — tanto da nova versão, quanto da original. Os textos foram escritos em sistema colaborativo: enquanto uma doava a sua história de vida, as outras detentas — ou “recuperandas”, como costumam chamá-las nas Apacs — se responsabilizavam pela edição. “Nós damos espaço para que elas contem as coisas da forma como construíram em suas memórias. Não questionamos se tudo o que está lá é inteiramente verídico, não é o nosso objetivo”, diz Natália, que percebeu uma diferença no resultado final do projeto agora que foi elaborado por mulheres. “Elas tiveram coragem de encarar alguns fatos que os homens sequer tocam no assunto. Elas falam do passado, das violências sofridas, questionam o sistema prisional, a Lei de Drogas e a dificuldade de se reintegrar quando saem da cadeia. Colocam o dedo na ferida mesmo”, conta.
De acordo com as estatísticas publicadas pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), desde a implementação da Lei das Drogas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o número de condenados passou de 31 mil, em 2005, para mais de 140 mil, em 2014. Nesse emaranhado de dados, é perceptível como a população feminina é a mais atingida pelas brechas da lei, que não faz uma diferenciação clara entre o usuário e o traficante: o número de encarceradas por tráfico de drogas aumentou quase sete vezes entre 2000 e 2014 (um número que representa quase 70% de todas as mulheres presas atualmente).
“Uma coisa particularmente cruel no caso das mulheres é que a maioria delas atua como coadjuvantes no transporte, num contexto que envolve um parceiro. Várias delas, por exemplo, são presas levando drogas para os presídios. São mulheres que, se você for pensar, não representam perigo, que não são, de fato, traficantes”, diz Leo. Natália também destaca o fato de que, muitas vezes, as mulheres cumprem penas maiores do que os homens, mesmo que tenham cometido os mesmos crimes. “Vimos um caso muito emblemático durante a oficina na Apac Rio Piracicaba, de uma moça que foi presa junto com o marido. Enquanto ele conseguiu recorrer e teve sua pena diminuída para 8 anos, embora tenha sido pego como chefe do esquema, ela, que foi presa por fazer os corres pra ele, pegou uma pena de 17 anos.”
Para a jornalista, é comum que por trás da prisão dos homens haja a figura de uma mulher do lado de fora “indo atrás de advogado e defensor público”; já na situação contrária, a mulher é abandonada pelo companheiro e até mesmo pela família. “Tem outras questões envolvidas, mas no geral é uma defesa mais deficitária.”
As duas edições da revista já publicadas foram feitas em Apacs, um modelo alternativo e privado de sistema prisional que se propõe a criar um método de recuperação baseado na autonomia do encarcerado. “Entrar numa Apac é muito chocante, porque eles não têm uniformes, usam roupas normais, todos trabalham, estudam e possuem atividades o dia inteiro. Não tem muro, não tem câmeras, muito menos gente armada”, eles contam.
A novidade mesmo vem com a revista número 3, realizada na ala LGBT do Presídio de Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte, que será lançada em maio. “A gente estava tentando entrar em um presídio comum desde 2014, mas a burocracia para a imprensa é imensa e recebemos muitos vetos”, explica Natália. Agora, as expectativas também se concentram em torno do workshop que será realizado no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto (Piep), também em Belo Horizonte, previsto para as primeiras semanas de junho.
Fonte: revista Trip