Livro Mães do Cárcere mostra a rotina do único presídio exclusivo para grávidas e lactantes do país e reacende a discussão sobre maternidade na prisão
Em 2014, o fotógrafo Leo Drumond e a jornalista Natália Martino conseguiram autorização do governo de Minas Gerais para frequentar semanalmente o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, o único presídio exclusivo para grávidas e lactantes do país. As visitas, que ocorreram durante 12 meses, deram origem ao livro Mães do cárcere, lançado em São Paulo no dia 30 de junho, e cujas fotos ilustram esse texto.
Fundado em 2009, o presídio tem hoje capacidade para receber 78 detentas. “Atendemos 100% da demanda do estado de Minas Gerais”, conta Eliane da Paixão, atual diretora da instituição. Trata-se de uma unidade modelo. Lá, as detentas têm serviços médicos disponíveis 24 horas por dia, não ficam presas em celas e recebem alimentação especial para o período da maternidade. “Sabemos que só conseguimos autorização para fotografar lá por se tratar de uma unidade com muito mais estrutura do que a média. Mesmo assim, logo nas primeiras visitas me impressionei muito com a dicotomia entre as grades da prisão e a liberdade das crianças correndo e brincando no pátio”, conta Leo.
No Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade é praxe que as crianças fiquem com as mães até completarem o primeiro ano de vida – esse período costuma ser reduzido a 6 meses em outras unidades. As festinhas de aniversário dos pequenos são momentos simbólicos, que misturam comemoração e despedida. “Desde o nascimento dos bebês já iniciamos a preparação psicológica para que as mães enfrentem a separação”, conta Eliane. Depois que as crianças deixam a unidade, e são acolhidas por familiares ou instituições de assistência social, as mulheres retornam a seus presídios de origem.
“Apesar de a proximidade com a mãe ser considerada um benefício para as crianças, muitos especialistas discutem o impacto disso nos pequenos”, explica Natalia, em um trecho do livro. “O filho de Fernanda, uma das detentas, costumava levantar a blusa quando via as agentes penitenciárias – em clara imitação das mulheres adultas, que faziam isso para uma revista superficial sempre que passavam de um ambiente a outro da unidade prisional”, completa.
A maternidade dentro da cadeia é marcada por dois conceitos: hiper e hipomaternidade. A primeira acontece quando as mulheres ficam completamente absorvidas pelo universo maternal. A rotina se transforma totalmente. O contato com o bebê ameniza a sensação de solidão e se torna a principal motivação da vida da detenta. Esse vínculo, entretanto, será abruptamente rompido. Essa ruptura imediata dá início a hipomaternidade. Além dos fortes impactos psicológicos, existem sintomas físicos dessa separação. O leite que só seca com a ajuda de remédios e a chamada “febre emocional”, que acontece quando a mãe passa mal ao ouvir o choro de outras crianças, são alguns exemplos.
Os impactos da hiper e hipomaternidade são muitos mais agudos para grávidas de outros estados brasileiros, que vivem em realidades bem distantes do centro de referência mineiro. “Normalmente elas ficam em alas separadas das outras presas, mas em celas. As crianças vivem o encarceramento. Muitas mulheres enfrentam situações precárias durante o período da gravidez”, explica Nina Cappello, advogada e uma das pesquisadoras responsáveis pelo relatório Mulheres em prisão, publicado este ano pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. “Visitei a Colônia Penal Feminina Bom Pastor, em Recife, e o que encontrei foram celas sem ventilação, sem banho quente, sem nenhum apoio médico. Lactantes que passam o dia todo fechadas nesses espaços, sem qualquer possibilidade de uma interação saudável com os filhos”, conta.
Nesse contexto, estar grávida e encarcerada é sinônimo de enfrentar uma gravidez de risco. O momento do parto costuma ser cercado de medo e incerteza. É o que conta Vilma, uma das entrevistadas da pesquisa de Nina, no relatório citado acima: “Tive meu bebê quando estava de 41 semanas. Não queriam me levar para o hospital, eu passei toda a madrugada tendo contrações, eu vomitava […]Eu já estava há três dias sangrando. […] Elas viam que eu estava sangrando e nada, não me tiraram de lá. Nesse momento eu já estava desmaiando, estava morrendo já, pensava que meu filho não ia sair […] meu bebê ficou seis, sete horas na incubadora por falta de oxigênio, pelo tempo em que ele ficou em minha barriga”.
Segundo pesquisa da Fiocruz divulgada em junho deste ano, o acesso à assistência pré-natal foi inadequado para 36% da mães, enquanto 15% afirmaram terem sido vítimas de violência. Entre as detentas, 55% tiveram menos consultas de pré-natal do que o recomendado; 32% não foram testadas para sífilis; e 4,6% das crianças nasceram com a doença.
Além dos abusos físicos, essas mulheres são expostas também a um cruel julgamento moral. “É como se o fato de terem cometido um crime tirasse delas a possibilidade de serem boas mães. Era comum vermos as mães serem duramente criticadas por tudo que faziam, por deixarem as crianças soltas, ou sujas, ou dormindo fora de hora. Elas são impossibilitadas de exercerem com autonomia suas maternidades”, relembra Leo Drummond, sobre o tempo em que frequentou o presídio mineiro.
Luana, outra presidiária ouvida por Nina para a publicação de Mulheres em prisão, falou sobre a violência institucional contra lactantes: “Se ela [a bebê] acordar e chorar e, no caso, a senhora subir e vir ela chorando, ela chama a minha atenção e, se acontecer mais vezes, ela faz um comunicado e eu posso até perder minha filha. Eles podem mandar minha filha embora com a minha família”.
“Mães na cadeia sofrem um duplo julgamento moral, inclusive no Judiciário. É comum que juízes sejam mais rígidos com elas por assumirem que essas mulheres expuseram seus filhos ao perigo, enquanto o que a lei garante é o que fato dessa mulher ser mãe seja levado em consideração para que ela receba penas alternativas e não seja encarcerada, protegendo assim toda sua estrutura familiar”, conta Nina.
A ideia de que mulheres recebem penas mais rígidas que homens é comprovada pelos dados do Infopen: a média geral da população prisional com penas entre 4 e 15 anos é de 49% – no entanto, quando avaliamos apenas a população feminina, essa média sobe para 61%. Das entrevistadas pela Fiocruz para a pesquisa Nascer na prisão, 81% foram presas quando já estavam grávidas e 83% delas já tinham outros filhos. Quase metade, 45%, tem até 25 anos e predomina o tráfico de drogas entre as condenações, com 68%. O total de mulheres encarceradas no Brasil já soma 37.300. Esse número cresceu 500% nos últimos 14 anos.
“O Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, ampliou a possibilidade de que mulheres com filhos de até 12 anos tenham direito à prisão domiciliar. Não importa o crime que cometeram. O juiz pode, e deve, conceder que ela aguarde o julgamento em casa”, acredita Nina. “Quase metade das mulheres encarceradas hoje estão aguardado julgamento. Mas essa lei simplesmente não é aplicada”, completa. Um caso recente envolvendo essa questão chamou atenção nos noticiários. Adriana Ancelmo, a ex-primeira-dama do Rio de Janeiro, foi autorizada a cumprir prisão em casa para cuidar dos filhos de 11 e 14 anos. Nina conclui: “O que vimos nesse caso foi o cumprimento de uma lei que vem sendo negada a mulheres negras e pobres”. Nada mais simbólico.
Fonte: Revista Trip