Contra a ruína da nossa democracia e a destruição das nossas instituições, precisamos resistir aos atentados já em marcha.
Paulo Bomfim, poeta maior, afirmou que amava tanto a liberdade que “gostaria de ter filhos com ela”. Todos nós a amamos, não sabemos bem como defini-la, mas ardorosamente a queremos. Como disse Cecília Meireles: “Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há quem explique e ninguém que não entenda”.
Pois é, a liberdade individual é um sentimento, é um estado de espírito antes de ser um conceito. A sua exteriorização se dá pela conduta pessoal, pelas variadas escolhas que surgem no curso da vida, pela manifestação do pensamento, pelo exercício de direitos, pelas opções nos relacionamentos e em tantas outras situações com as quais nos defrontamos. A liberdade, no entanto, é regrada e limitada pela lei, tendo sempre a liberdade alheia como freio para o exercício da liberdade própria.
Este despretensioso escrito obviamente não comporta apreciações filosóficas, políticas e sociais sobre o tema. Parte do princípio, apenas, de que a liberdade se trata de um benefício, de um bem almejado desde os primórdios da civilização, e a sua conquista sempre representou uma vitória do humanismo, pois atende a um anseio primário do homem, inerente à sua própria natureza. Por outro lado, procura este artigo exteriorizar uma verdadeira angústia – que com certeza é a de inúmeros cidadãos brasileiros – em face dos riscos reais que ameaçam a democracia e, por consequência, a liberdade na atualidade.
Já se disse ser mais árdua a tarefa de preservar a liberdade do que a de conquistá-la. Ela, como a democracia, representa uma tenra flor que precisa ser regada constantemente para não fenecer, no dizer do político Otávio Mangabeira. Os subliminares e sutis ataques a ela vão minando, esgarçando, corroendo as suas raízes de forma quase imperceptível, até atingir as suas estruturas e arruiná-la.
Como consequência, os alicerces jurídicos e as bases sociais da liberdade ficam vulneráveis. Os primeiros, por meio do descrédito e, mesmo, da desmoralização das instituições. Os segundo, pela implantação da discórdia, da intolerância, da violência no seio da sociedade. São alcançados também segmentos cuja liberdade de atuação representa as vigas mestras da liberdade, como a imprensa e a advocacia.
Esse processo está em pleno desenvolvimento em nosso país.
A preservação da liberdade, entre outros fatores, depende da escolha dos nossos representantes nas esferas do Legislativo e do Executivo, por meio de eleições que reflitam a vontade soberana do povo. Para que essa vontade seja refletiva com fidelidade, é imperioso que o sistema eleitoral fique, tanto quanto humanamente possível, imune a mazelas e vícios que o maculem.
O nosso sistema eleitoral constitui, desde a sua instalação, motivo de orgulho e é reverenciado pelo mundo todo. No entanto, por motivações nebulosas, carentes de racionais explicações, até porque não as há, engendrou-se uma campanha contrária ao sistema. O seu desarrazoado conteúdo se opõe a uma realidade que só aponta para a correção do sistema, e procura a volta do sistema anterior – este, sim, propiciador de fraudes e de adulteração da vontade do povo.
Eleições, portanto, constituem um dos pilares da manutenção das liberdades coletiva e individual. Permite que cada qual escolha aqueles que irão representar o todo social. Os obstáculos colocados à fluição normal do sistema eleitoral têm claros objetivos de conturbar a ordem jurídica institucional. Não sendo satisfeitas pelas urnas as aspirações pessoais, vai-se procurar invalidar o processo.
No entanto, é preciso ter presente que são variadas as fontes de desestabilização e de risco à liberdade. Surgem aos poucos, em pedaços, pontuais, de maneira imperceptível. E nós, por não percebermos ou por nos omitirmos, acabamos sendo coniventes com este processo dinâmico e destrutivo. Deixamos que ele avance e vá solapando as bases em que se fundam e se exteriorizam as liberdades individual e coletiva.
Os atentados à liberdade de imprensa; à liberdade de cátedra nas universidades e nas escolas pública; às expressões culturais e artísticas; e às pesquisas científicas são exemplos deste processo corrosivo e predatório. Por vezes, o cerceamento à liberdade se dá pela ausência de estímulo e de recursos para o exercício de atividades que dependem de apoio material. É o caso exatamente da cultura e da ciência. Esses setores ficam à míngua, sem condições para seu livre desenvolvimento. A falta de liberdade para progredir leva à estagnação.
Cabe, neste contexto, uma referência à denúncia do poeta Eduardo Alves da Costa, em No caminho, com Maiakovski, que dizia que um dia entram no nosso jardim e arrancam uma flor. No dia seguinte, destroem todas as flores e, em seguida, invadem a nossa casa. E nós nada fazemos.
Para não assistirmos à ruína da nossa democracia e à destruição das nossas instituições, precisamos nos fazer ouvir e transformar a nossa voz em instrumento de oposição e de resistência aos atentados já em marcha. Dessa forma estaremos preservando o nosso jardim das liberdades e clamando com fervor a nossa devoção a este valor supremo e sublime que é ser livre.
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Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
O Estado de S.Paulo
24 de maio de 2022 | 03h00