Artigos & Publicações

Em entrevista ao ‘Estadão’, criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira afirma que operação, que completa dez anos desde sua primeira fase ostensiva, alimentou a mentalidade de que a advocacia ‘atrapalha’ e fomentou o ‘punitivismo’


Ao longo dos 53 anos de carreira, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira assumiu casos de enorme repercussão política. Defendeu, por exemplo, o empresário Paulo César Farias, o “PC Farias”, pivô do escândalo de corrupção que levou à queda do ex-presidente Fernando Collor. Trabalhou também no Mensalão, caso que colocou lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores e de partidos aliados no centro de um esquema de compra de apoio político no Congresso.

Quase uma década depois, quando a Operação Lava Jato voltou a abalar a classe política, o criminalista entrou em campo. Assumiu a defesa do vice-presidente da Camargo CorrêaEduardo Hermelino Leite, que depois fechou acordo de delação premiada com a força-tarefa de Curitiba e admitiu o pagamento de propina a diretores da Petrobras.

Mariz foi um dos primeiros advogados a se insurgir contra os métodos da operação, posição que mantém até hoje, dez anos após a primeira fase ostensiva da investigação prender o doleiro Alberto Youssef. Em entrevista ao Estadão, Mariz afirma que a Lava Jato alimentou a ideia de que a advocacia “atrapalha”.

Avalia, no entanto, que o exercício do direito de defesa piorou desde o auge da operação. “Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época.”

Ele cita, por exemplo, as sessões virtuais, que não permitem sustentação oral em tempo real, e o tempo reduzido para argumentação no julgamento de recursos em habeas corpus. “Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.”

A vasta experiência em casos de corrupção o faz acreditar que, apesar do desempenho sem precedentes, a Lava Jato não corrigiu a raiz do problema. “As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso.”

O saldo da operação, na visão do longevo advogado, foi fomentar o punitivismo. “A sociedade passou a clamar por cadeia.”

As críticas também se estendem ao hoje senador Sérgio Moro (União Brasil-PR). Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou o ex-juiz suspeito na condução dos processos envolvendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Mariz considera que Moro foi parcial. “Juiz não combate, juiz julga.”

A Lava Jato errou?

A Lava Jato surge porque existe um problema crônico do Brasil, que se chama corrupção. Chegou um momento em que o grau de corrupção veio à tona com mais intensidade. Aí surge um juiz, em Curitiba, Sérgio Moro, que resolveu ser o juiz que iria combater a corrupção. Aí eu faço uma primeira observação: juiz não combate, juiz julga. Promotor não combate, promotor é o homem auxiliar da promoção da justiça. E o advogado defende. Esses são os nossos papéis. Não existe combatente nessa história. O primeiro grande engano dos operadores da Lava Jato foi achar que encontraram instrumentos para pôr fim ao crime. Bobagem. O crime já tinha ocorrido e a punição veio posteriormente. As causas da corrupção são éticas e eles não mexeram com isso. Em segundo lugar, nós tivemos um desvio do Direito Penal.

Os advogados tiveram dificuldade de exercer a defesa de seus clientes? Princípios como a presunção de inocência foram flexibilizados?

Com esse desvio do Direito Penal, você passou a ter uma cultura punitiva muito forte, que afastava o garantismo. Prevaleceu a punição. A sociedade passou a admirar muito o punitivismo. Para alguns, a única resposta possível ao crime era a prisão. A sociedade passou a clamar por cadeia. Aí entra um outro fator que se chama mídia. O crime passou a ser um instrumento de espetáculo. A imagem posta ao público representa uma pena perpétua e cruel.

Neste momento, muitos advogados criminais, inclusive eu, passaram a ser contra a Lava Jato. O Judiciário passou a flexibilizar as garantias individuais. Nós começamos a perceber os excessos da Lava Jato. Vou dar um exemplo: a prisão preventiva é uma prisão em caráter excepcional, porque o que vigora é a presunção de inocência. A preventiva passou a ser usada a todo momento. Prendiam para o sujeito fazer delação e ele assentia para se ver livre da cadeia. Esse foi o primeiro instituto torto, desviante, que surgiu com a Lava Jato.

Moro foi parcial?

A grande questão da Lava Jato é que ela caiu nas mãos de quem não estava preparado para ser responsável pelo “combate” ao crime, alguém que se tornou parcial. E a única coisa que o juiz não pode ser é parcial. O juiz não pode julgar o caso antes do momento adequado. E aqui a impressão nítida é que, desde o início das investigações, o juiz já tinha constituído a sua convicção sobre o caso. Moro se tornou um paladino da honra, da decência, da honestidade, quando na verdade, não que fosse desonesto sob o aspecto moral, mas ele não tinha honestidade como juiz, no sentido de que não era imparcial. Ele recebia o inquérito e já formava o seu convencimento. Dali para frente, viesse a prova que viesse a favor do réu, ele não dava bola, ele era condenador.

Houve um direcionamento político da operação?

O que ficou muito claro para mim foi a quebra das regras de Direito. As regras protecionistas, as regras de garantias foram todas afastadas em nome desse punitivismo. Agora, se o escopo era pegar político, não sei dizer. O escopo era punir. E aí houve um outro desvio, que foi atingir as empresas. Você prejudica o País, o potencial econômico-financeiro do País.

Por que a Lava Jato começa a ruir?

Porque foi posta a nu. Essa vestimenta de proteção à sociedade, de combate à corrupção, caiu. Se observou que não havia um grau grande de autenticidade, as coisas já estavam pré-ordenadas. Havia uma intenção dos operadores da Lava Jato muito mais voltada para sua autopromoção do que para, efetivamente, o combate à corrupção. E os instrumentos foram errados. Uma série de fatos abusivos acabou por desmoralizar a Lava Jato.

Onde está o Direito Penal hoje? O Judiciário ficou mais punitivista pós-Lava Jato ou o garantismo reacende como reação à operação?

Difícil dizer. Não sei se alguém hoje tem essa resposta. A visão que a gente tem do Judiciário é muito mitigada. O Judiciário é tudo, não é só o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. O que acontece em primeiro grau, nós sabemos muito pouco. Eu sei que nós estamos passando por uma fase difícil em termos de advocacia. A mentalidade de que a advocacia atrapalha foi alimentada pela Lava Jato. Com relação a abusos, condução coercitiva e prisão preventiva em excesso, por exemplo, houve uma melhora. Por outro lado, o exercício da defesa está mais difícil. Sustentações orais você tem dificuldade. Esse processo online é uma conversa fiada.

O habeas corpus, instrumento de maior envergadura para barrar os excessos do Estado, teve sua importância mitigada. Primeiro, o desembargador ou ministro decide monocraticamente, o que já é um verdadeiro abuso, porque o tribunal existe para as decisões colegiadas. Aí, no recurso, o advogado tem cinco minutos para fazer a sustentação oral, já com o voto contra. O grande problema da advocacia é que o exercício da defesa está muito mais difícil até do que na época da Lava Jato, por incrível que pareça.

Com todos os erros, mazelas e prejuízos, hoje você tem dificuldades que não tinha naquela época. E essas dificuldades estão aumentando. Se hoje não estão prendendo a torto e a direito, se não estão fazendo condução coercitiva, se hoje existe audiência de custódia, que é uma boa coisa, para exercer a defesa há mais dificuldade.

Não foi bom para a advocacia criminal enquanto houve operações?

É preciso distinguir duas coisas: o que é bom profissionalmente, em termos de resultados financeiros, e o que é bom ou não para a ordem jurídica. Para a advocacia foi mesmo. Agora é preciso fazer uma ressalva: quantos ganharam dinheiro? Há 1,3 milhão de advogados no Brasil.

O que é preciso corrigir no controle criminal da corrupção dez anos depois da Lava Jato?

Repito que a questão é ética. O que leva a esse distúrbio ético, na minha opinião, é a cobiça. A sociedade de consumo tomou conta do País. É o “ter” em substituição ao “ser”. Isso leva à ganância, que leva ao crime. Resolver isso não é um passe de mágica. Em segundo lugar, é preciso desenvolver mecanismos estatais de proteção ao erário. A lei das Licitações, por exemplo, é um campo aberto à corrupção.

Vivemos um momento de incerteza em relação à leniência. Os acordos de delação e leniência foram mal utilizados na Lava Jato ou são um instrumento válido?

O instrumento, desde que adotado de forma correta, é bom. O que não pode é delação ser prova. Delação é meio para alcançar prova. Se você me perguntar o que está acontecendo, o que especificamente está levando um determinado ministro do Supremo (Toffoli) a suspender a cobrança das multas desses acordos, eu não sei te dizer. O que está motivando essas decisões que estão anulando delações, 70 só na Odebrecht. Aí acaba tudo? Isso não está bem. A gente não consegue nem defender ou ser contra, porque não dá para entender. Quem não leu o acórdão não sabe. Quem leu o acórdão, continua não sabendo, porque não dá pra entender.

—–

Por Rayssa Motta e Julia Affonso
O Estado de SP
14 de março de 2024