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Por Gustavo Gasparoto

No final do ano de 2019 foi publicada a denominada “Lei Anticrime”, a qual, segundo os legisladores, veio para aperfeiçoar a legislação penal e processual penal vigente. Muito embora o projeto da Lei n.º 13.964/2019 tenha sido propagado por seus precursores de que a sua função seria a de endurecer o sistema penal em um todo, fato é que ela trouxe diversas inovações interessantes (a título de exemplo, o disposto no art. 3º-A, que reconhece a estrutura acusatória do processo penal).

Para o presente debate, a inovação que merece destaque se encontra no título IX do Código de Processo Penal (Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória), mais precisamente no § 2º do artigo 315:

“Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada.

(…)

§ 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Malgrado o referido dispositivo esteja inserido no título das cautelares, conforme acima mencionado, o § 2º deve ser aplicado em toda e qualquer decisão judicial proferida, “seja ela interlocutória, sentença, ou acórdão”. Esta inovação do CPP regulamenta preceito constitucional (princípio da motivação das decisões judiciais) já existente, conforme se verifica no art. 93, IX, da Carta Magna:

“IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

O art. 315, § 2º, do CPP não determina apenas que o juiz fundamente a decisão proferida (o que já era exigido pelo texto constitucional); ele vai além: o dispositivo elenca hipóteses que não podem ser consideradas como fundamentação legal. Ou seja: não basta que o magistrado profira decisões extensas, “recheadas” de fundamentos de direito e termos genéricos, ele deve respeitar os parâmetros listados no artigo em espeque.

Não se pode olvidar, que antes mesmo da publicação da Lei n.º 13.964/2019 já havia precedentes dos Tribunais Superiores no sentido de que decisões genéricas e abstratas não podem ser consideradas válidas; no entanto, agora, com o regulamento infraconstitucional, esta exigência ganha força.

Na prática é muito comum, por exemplo, se deparar com decisões de prisão preventiva, alegando que o cárcere prematuro é necessário para resguardar a ordem pública, pois o crime X é de alta periculosidade e afeta toda a sociedade; que a prisão preventiva deve ser decretada para não gerar sensação de impunidade; que a prisão se justifica para credibilidade das instituições; entre outros. Todavia, esses “fundamentos”, por si só, não são aptos para tornar a decisão válida (incisos I, II e III do § 2º), sobretudo decisões responsáveis em restringir o direito à liberdade – o mais sagrado entre todos os direitos.

A hipótese elencada no inciso IV também é de sobremaneira importante, uma vez que o juiz, ao não aplicar enunciado de Súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, deverá demonstrar os motivos pelos quais o enunciado invocado não se aplica no caso concreto (distinguishing). Noutro giro, não poderá, ainda, utilizar enunciados de precedente ou Súmula, sem explicar por qual razão se enquadra no caso em análise (inciso V).

Isto é: as hipóteses trazidas pelo art. 315, § 2º, do Código de Processo Penal possuem inegável relevância jurídica. Isso porque o processo penal não pode ser visto como uma mera formalidade para condenar alguém. As garantias e procedimentos nele previstos devem ser resguardados por todos: juízes, promotores e advogados. É inadmissível em um Estado Democrático de Direito que alguém seja denunciado, preso ou condenado, sem saber o porquê.

Por trás de milhares e milhares de folhas de um processo se encontra uma vida, que na maioria das vezes só possui voz por meio da sua defesa. A importância da fundamentação é justamente essa: tornar claro os motivos ensejadores da decisão, a fim de viabilizar eventual impugnação técnica.

Não se sabe até que ponto as inovações trazidas pela “Lei Anticrime” surtirão efeitos; isso só o tempo dirá. Mas, com certeza, são inovações que se bem aplicadas e respeitadas, serão capazes de evitar cada vez mais decisões arbitrárias por parte do Estado. E, a depender da advocacia, a luta será constante para que isso ocorra.