Civilidade e racionalidade para divergir

Por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira


Com força predatória, surge o preconceito ligado ao pensar diferente, que enraivece.

Inicialmente deve ser dada uma explicação acerca do título. Não se trata de divergência ou diversidade social, de raça ou de sexo. Ela se refere às diferenças de opinião e de manifestação como corolários da liberdade de pensamento, que é a essência da democracia e a base de uma sociedade livre e pacífica.

Em relação ao conteúdo do texto também é necessário um esclarecimento. As opiniões divergentes precisam ser justificadas. Assim, ao menos se saberá tratar-se de um ato de racionalidade, ainda que não aceitas as razões. Os divergentes devem manter respeito recíproco, sem fanatismo, com tolerância e mente aberta, prontos para, eventualmente, mudar suas posições.

Vários fatores certamente concorreram para a formação daqueles que integram os segmentos que cultuam os valores da democracia e da liberdade, no Brasil de hoje. Foram forjados num ambiente de livre pensar, opinar, contestar e contrapor as suas opiniões com as que lhes são contrárias.

Nesse sentido, ao lado da liberdade de se expressar, cada qual deve reconhecer o mesmo direito para seu semelhante, e mais, defender esse direito como se seu fosse, mesmo divergindo do pensamento alheio. Trata-se do absoluto respeito pelo pensar de outrem. “Não concordo com o que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizeres.”

Pois bem, esse antigo e sábio brocardo está sendo afrontado sem nenhum disfarce ou constrangimento. A intolerância é a resposta àqueles que ousam discordar.

Assistimos às constantes agressões aos postulados civilizatórios construídos durante séculos, os quais se pensava que estariam hoje absorvidos pelo (in)consciente social e impregnados na cultura universal.

Ledo engano. As duas guerras mundiais no século passado; as cruentas disputas religiosas do Oriente Médio e de outros sítios do universo; a existência de grupos de extermínio; as organizações criminosas; as perseguições discriminatórias de raça, cor, religião e sexo; tudo isso reflete um quadro de ódio, fruto do desamor que pouco a pouco se vai alastrando aqui e fora.

Dentro desse panorama que contrasta com as expectativas de um mundo harmonioso e pacífico, sobressalta, como fenômeno mundial, um endêmico sectarismo. Esse fenômeno encontra as suas raízes não necessariamente em conturbações sociais ou na luta pelo poder. A sua origem está relacionada à liberdade de pensamento, de raciocínio e de expressão.

Ao lado das mazelas já mencionadas, surge com força predatória em nosso horizonte o preconceito ligado ao pensar diferente, que provoca imediato enraivecimento. Não concordar com algo dito basta para que o dizente passe a ser considerado adversário ou desafeto. Não alguém que tome posição diversamente, mas um inimigo. Nesses embates não há protagonistas de um diálogo, mas sim de um monólogo raivoso e irracional.

Nele não são reconhecidas qualidades pessoais nem direitos. A não coincidência de opinião é suficiente para não se reconhecer no outro um sujeito de direitos. Negam-se a ele as mais comezinhas pretensões ligadas à realização de seus objetivos ou à satisfação de seus anseios.

No Brasil atual, o discurso oficial está contaminando vários setores de nossa vida. As falas são sempre em sentido contrário à racionalidade, ao bom senso, à opinião universal sobre temas específicos, como o meio ambiente, e, mais recentemente, à pandemia e à vacina. Em relação a ambas, o pouco-caso, a omissão e o desinteresse por soluções chocam até as mentes mais desviantes e anormais.

Seria desnecessário citar outros exemplos de ilogismo, brutalidade, desumanidade, desprezo pela vida e consequente indiferença em face da morte. Mas deve-se insistir: desrespeito às instituições, à imprensa livre, às relações internacionais, ao exercício do direito de defesa, à diversidade religiosa, ao ensino livre, à ciência, aos direitos humanos.

Para ser coerente com este texto, afirmo que eu até reconheceria o direito de pessoas apoiarem tais sandices caso eu conhecesse com clareza os motivos e as razões que justificam esse apoio. Eu duvido, no entanto, que um único apoiador das falas oficiais aponte um único argumento racional que alicerce os palavrórios acima mencionados e outros não expostos por falta de espaço.

Falo ainda de outras manifestações orais, pois quanto às realizações concretas não há como apoiar, uma vez que elas simplesmente inexistem. Ações práticas, políticas públicas positivas, execução de ideias e planejamentos palpáveis de qualquer natureza e área não são sequer mencionadas no plano da retórica.

Por enquanto, não se vislumbra sequer uma pequena abertura de espírito e de mente que possibilite um diálogo desprovido de paixão, que paire num nível racional, tendo como foco os elevados interesses do País e de seu povo.

Desejo, com todo o ardor do meu querer, que de alguma forma os hoje defensores do status quo se conscientizem de que sua obstinação não atende às aspirações nacionais. É preciso lembrar que nunca é tarde para a prevalência da razão e do amor.

—–

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.