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Pensava-se que após o 7 de setembro nosso mandatário mudaria de plumagem. Ledo engano.

De início, peço desculpas aos belos pássaros da nossa fauna, pois neste texto serão comparados com quem emite sons na forma de palavras que não honram a beleza do canto das nossas aves e a inteligência do nosso povo. O contraste será entre a patativa, o tico-tico, o sabiá, o beija-flor, que emitem chilreados, gorjeios e trinados belíssimos, e o carcará, que tem um canto sinistro e sombrio.

As escusas são extensivas aos grandes oradores nacionais, advogados, parlamentares, pregadores que honraram a arte de falar e usaram a palavra com objetivos nobres e edificantes, mesmo que em tons contundentes e críticos.

Nós já tivemos dois presidentes, Epitácio Pessoa e Afonso Pena, com alcunhas de aves. Patativa e ticotico, respectivamente. E, agora, está surgindo um terceiro cognome, que se amolda a outro mandatário: carcará, pássaro predador, cujo canto anuncia maus agouros e destruição.

Pois é, cada época com o pássaro e com o presidente que lhe são próprios. Digo ser a nossa época própria do presidente que aí está porque ele foi eleito e, portanto, parte da sociedade o quis. Agora, ela está amargando as consequências de sua má escolha, provocada por uma ave que sobrevoa e ameaça a nossa já combalida harmonia social, as nossas instituições, e continua a macular a nossa imagem no exterior com a sua conduta deletéria, antítese do que se espera de um chefe de Estado.

Ocorre que o preço que estamos pagando pelo voto que lhe foi dado, motivado por temores ideológicos infundados e por arroubos conservadores inadequados e passionais, está insuportavelmente elevado. Nunca houve na história pátria um aviltamento, uma degradação, um rebaixamento de valores tão acentuado como atualmente. A mácula sobre a nossa imagem perante o mundo irá demorar para ser removida.

Parte da sociedade está resistindo. São aqueles que sempre se opuseram à temerária aventura. Outros, os enganados, decepcionados e arrependidos, estão talvez rezando e pedindo perdão.

Os pronunciamentos oficiais, especialmente os do dia 7 de setembro e a desastrosa fala nas Nações Unidas, salvo nos trechos mais agressivos, foi um canto chocho, simplório, desarticulado e, como sempre, desarmonioso e em péssimo Português. Mas, principalmente, estavam repletos de invencionices, enganações e deturpações da realidade. Não se esperavam discursos de conciliação, apaziguadores, elogiosos, isso jamais. Mas, depois da carta ilusoriamente pacificadora que assinou, esperava-se algo novo, mesmo dentro da sua linha autoritária, despótica e megalomaníaca, mas algo novo que não distorcesse a realidade da forma tão agressiva e acintosa como ocorreu.

Esperava-se o mínimo respeito para com o resto do mundo e com o Brasil. Aguardava-se que a verdade dos fatos fosse homenageada e reverenciada, e não agredida e desprezada.

Os últimos discursos continuaram a ser calcados numa fala vazia de conteúdo ideológico ou programático. Sua ideologia, todos sabem, é a do poder absoluto enfeixado em suas mãos, e só nelas. Programa de governo jamais teve. Um amontoado de palavras órfãs de significado, sem apontarem nenhum objetivo concreto, vazias de expressão, ocas de conteúdo, mal pronunciadas e pessimamente colocadas nas frases. Mais uma vez, foi coerente consigo, utilizou as fanfarronices, bravatas e jactâncias de sempre.

No entanto, enganei-me ao imaginar que ele, na ONU, guardaria um mínimo de fidelidade à verdade que emana nítida da realidade, e não a afrontasse, como fez, por exemplo, com as questões ambientais e da saúde. Teve o desplante, a audácia de negar a predação das nossas florestas e de afirmar a eficácia da cloroquina. Faltou com a verdade, sem pejo ou inibição. Agrediu-nos, estapeou-nos sem nenhum embaraço ou pudor.

O Verbo, como mensagem de Deus e como instrumento de comunicação humana, está sendo aviltado, destituído de grandeza, pois utilizado como meio de propagação de falácias, assim como da violência, da intolerância, do poder absoluto, das armas para o povo, da destruição das instituições democráticas e da própria democracia.

Pensava-se que após os problemas do 7 de setembro, razão que o levou a tentar mudar de plumagem, pudesse ocorrer não uma metamorfose, mas algumas alterações em seu modo de se conduzir. Sabia-se que o prazo de validade das inovações seria incerto, em face de sua imprevisibilidade, mas não tão curto.

Como iria falar na ONU, achava-se que tentaria reforçar a ideia de que mudara. Ledo engano, doce ilusão.

Como ele estava contrariando os seus obsessivos apoiadores, verdadeiros arautos da desarmonia e do caos, deve ter sido induzido a expor a sua real face. E o fez, infelizmente, perante o mundo, aturdido mundo. Retornaram os seus desvarios verbais, inspirados com certeza nestes mesmos alucinados seguidores.

Imaginava-se que ele poderia mudar a entonação, para se transformar em rouxinol, bem-te-vi, sabiá, andorinha, tico-tico ou patativa.

Não, isso não aconteceu, pois o seu canto natural não é o da pomba da paz, mas o do carcará da destruição.

Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

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Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.