Ilona Szabó de Carvalho, 37 anos, nunca perdeu um parente ou um amigo atingido por uma bala perdida. Também não passou pelo sofrimento de ver alguém querido viciado em drogas. Só pisou em uma favela para fazer trabalho voluntário. No entanto, ela conhece a fundo o derramamento de sangue promovido pelo tráfico, que faz do Brasil o campeão mundial de homicídios – a cada hora, sete pessoas são assassinadas no país.
Ilona é diretora do Instituto Igarapé, referência internacional em pesquisa na área de segurança pública. É também coordenadora da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, criada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que reúne líderes mundiais como o ex-chefe de Estado da Colômbia, César Gaviria, e o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
Foi um artigo de jornal, que comparava as crianças envolvidas com o mercado dasdrogas a soldados de guerra, que fez a fluminense criada em Nova Friburgo, no Rio, iniciar sua caminhada. “Fiz minha dissertação de mestrado sobre o tema e depois coloquei a mão na massa.”
Ilona refere-se ao ano de 2003, quando integrou a ONG Viva Rio e participou da campanha pelo desarmamento. Como coordenadora dos postos de coleta de armas, ouviu histórias dolorosas. “Mexeu comigo o drama de uma mãe que entregou o revólver do filho que havia sido assassinado pela polícia. Era uma arma com a numeração raspada, mas ela fazia questão de dizer que o rapaz não era bandido”, recorda.
“Mesmo se tivesse cometido um crime, ele não deveria ter sido morto! Foi uma violação dos direitos humanos pelo Estado.” Filha de um engenheiro e de uma jornalista, Ilona acredita que seu lado contestador vem de berço. “Meus pais nunca disseram ‘não’ pelo ‘não’. Sempre me incentivarama argumentar. Quero ser assim com minha filha”, diz, referindo-se a Yasmin, 1 ano, do casamento com o economista canadense Robert Muggah, 41, com quem está desde 2012.
Na entrevista a seguir,ela fala sobre a descriminalização – debate que corre atualmente no Superior Tribunal Federal –,de como se tornou aliada de FHC, e revela que, como todas nós,já sofreu machismo.
Marie Claire – Vários países descriminalizaram as drogas. Por que no Brasil é tabu?
Ilona Szabó de Carvalho – Porque existe uma visão equivocada de que quem usa drogas se torna viciado. Pesquisas comprovaram que apenas 10% a 12% das pessoas que consomem maconha, cocaína ou outra substância desenvolvem o uso problemático. As outras vão usar e largar. Para essa minoria, que deveria ser tratada como doente e não como criminosa, a política antidrogas é péssima. O dependente tem medo de procurar ajuda e todos ficamos no meio do fogo cruzado entre polícia e traficante. Se a descriminalização fosse aprovada, o Brasil não viraria uma cracolândia. Mais de 30 países optaram por esse caminho e em nenhum houve explosão de consumo.
MC – A descriminalização acabaria coma guerra ao tráfico?
ISC- Seria o primeiro passo. Nos últimos 50 anos, a política antidrogas limitou-se a uma corrida armamentista, que gerou mortes e cadeias superlotadas. O país também ficou mais preconceituoso, enxergando o jovem negro e morador da favela sempre como alguém envolvido com o tráfico.
MC – Dois dos ministros do STF, Roberto Barroso e Edson Fachin, defendem somente a descriminalização da maconha, mas não a de outras drogas. O que acha disso?
ISC – Seria um progresso injusto e beneficiaria só quem tem dinheiro para pagar propina e não ir em cana. Como se justifica uma decisão baseada no direito à liberdade, na qual o cidadão pode usar maconha, mas não cocaína, crack ou ecstasy?
MC – A maconha é porta de entrada para outras drogas?
ISC – Nenhuma pesquisa comprovou essa teoria. A maioria dos jovens tem acesso ao álcool antes de ter à maconha. O que foi descoberto é que o elo entre o consumo de uma droga e de outra mais pesada é o contato com o traficante. Hoje ele vende maconha e amanhã diz: “Tenho uma coisa nova aqui. Quer experimentar?”. Esse contato faz toda a diferença e por isso os holandeses abriramos coffee shops [locais que vendem cannabis para consumo pessoal].
MC – Se as drogas fossem legalizadas, como seriam reguladas?
ISC – Algumas, como a maconha, seguiriam um modelo restrito, como é com o cigarro hoje. O produto viria com informações sobre os riscos à saúde e a venda seria proibida para menores. Drogas pesadas seriam controladas na esfera médica. Existem experiências na Europa com a metadona, que faz a substituição da heroína, para que o dependente abandone o vício aos poucos. Há salas de consumo nas quais usuários registrados usam drogas supervisionados por médicos. Ali, obtêm uma heroína que não vai matá-los de overdose e também não compartilham seringas. Os dependentes não ficam abandonados à própria sorte e as oportunidades estão ao alcance, caso decidam largar o vício.
MC – O Brasil poderia implementar um programa tão moderno?
ISC – Por que não? Dizer que não somos capazes é não querer aprofundar o debate. As salas de consumo seriam uma grande opção para o crack. O usuário sairia da cracolândia, onde corre perigo. Estimamos que existam 300 mil usuários dessa droga nas cidades. É nossa maior preocupação hoje.
MC – Que políticas antidrogas brasileiras você destacaria?
ISC – O Programa de Braços Abertos, da prefeitura de São Paulo, oferece um pacote de direitos para usuários de crack, como moradia, alimentação e trabalho. O Centro de Convivência É de Lei, também em São Paulo, promove ações de redução de danos e implementou o projeto Respire, que leva informações a festas de música eletrônica.
MC – A presidente Dilma se declarou contra a descriminalização.
ISC – Não acredito que ela pense assim. Acho que não quis fazer o papel de liderança transformadora. Por ser mulher e mãe, poderia ter falado sobre isso de uma maneira muito mais legítima e humana.
MC – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também não abordou o tema em sua gestão.
ISC – Os líderes da geração dele não tinham como discutir. O debate não estava tão articulado. Mas, nos últimos cinco anos, líderes começaram a falar no tema. Na eleição passada, a proposta da descriminalização foi pauta de dois candidatos a presidente [Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV)].
MC – Você usa drogas?
ISC – Não.
MC – Nunca experimentou?
ISC – Fumei maconha e tomei ácido quando era mais jovem. Não usei mais porque não gosto de perder o controle e aprendi isso passando por situações ruins. Na adolescência, passei mal com álcool algumas vezes. Hoje, bebo uma tacinha de vinho, que me relaxa. Maconha só me dá sono. Rompi com as drogas ilícitas em função do meu trabalho. Mas não acho ilegítimo que pessoas que atuemna minha área consumam. Não as desautoriza.
MC – Era rebelde na juventude?
ISC – Não. Fui representante de classe no colégio católico em que estudei. Levantava as bandeiras que achava justas e sempre fui conciliadora. Tinha 11 anos quando meus pais se separaram e virei mediadora da família porque eles não se falavam no começo do divórcio.
MC – Tinha uma vocação política aí… Pensa em se candidatar?
ISC – Gostaria, sim. Meu mentor é o presidente Fernando Henrique, mas ele nunca me incentivou a me filiar a seu partido e diz que é melhor que eu fique fora da política. Para me candidatar, precisaria de um dinheiro que não tenho para financiar uma campanha. Quem me desse essa verba certamente esperaria alguns favores em troca. Devo muito a ele. Se me tornei uma liderança respeitada foi porque ele me abriu portas e me incentivou. Estava na Viva Rio havia cinco anos quando ele me convidou para fazer parte da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, em 2008. Sua esposa [a paulista Patrícia Kundrát, 37] é minha amiga.
MC – Quem defende causas polêmicas sofre ataques nas redes sociais. Acontece com você?
ISC – Já recebi e-mails do tipo: “Sua filha vai morrer de overdose!”. No Facebook, fazem montagens com fotos minhas, me ofendem… Se um dia sentisse que minha família corre perigo, não sei se continuaria no Brasil. Tudo muda com um filho.
MC – Imagina como falará com sua filha sobre drogas?
ISC – Com honestidade. As drogas sempre existirão e seu filho pode querer usar, por melhor que seja sua educação. As decisões precisam ser conscientes. Se quiserem consumir, por mais que os pais considerem isso errado, devem informá-los. Quando se criminaliza uma conduta que deveria ser de saúde pública, a informação não chega aos pais, às vezes nem aos médicos.
MC – Você é uma mulher bonita, que lida com um tema espinhoso. Já sofreu machismo?
ISC – Já levei cantadas, fui desacreditada… Uma vez, voltei bronzeada das férias e tinha uma reunião com políticos. Um deputado veio com uma brincadeira totalmente descabida na frente de todo mundo. “Está queimada de sol, hein? Aprontou todas nas férias…” Ele usou um tom tão machista… Querendo insinuar algo pelo fato de eu ser uma ativista da descriminalização.
MC – Você é feminista?
ISC – O feminismo não pode ser extremo. Estudei na Suécia há 15 anos. Lá, tive colegas feministas radicais, que achavam que pedir ajuda a um homem nos diminui. Ia à universidade de bicicleta e, um dia, levei um tombo. Uns rapazes que passavam me ampararam e elas ficaram loucas. “Você tem que se virar sozinha! ”Um exagero… Gosto de ser mulher e de ser uma líder com olhar maternal. Mas também adoro contar com a força do meu marido para carregar minhas malas [risos]. Ele é canadense, não foi contaminado por esse machismo brasileiro.
Fonte: revista Marie Claire