Alvo de uma representação por ter libertado presos que estavam detidos por mais tempo que o fixado na sentença, a desembargadora Kenarik Boujikian, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), diz que é “dever ético” de todos os juízes manter e defender a independência no exercício da função.
Em entrevista concedida por e-mail a CartaCapital, Boujikian comenta as decisões que lhe renderam o processo por violação do princípio da colegialidade e critica a baixa representatividade feminina no Judiciário brasileiro.
“O mundo do direito penal ainda é masculino, e não só no tribunal. Veja nos seminários, congressos, a composição quase toda é de homens. O movimento feminista, e assim me considero, luta pela construção de maiores espaços para as mulheres na esfera dos poderes de Estado”, afirma.
Conhecida por sua luta pela defesa dos direitos humanos, Boujikian ainda demonstra preocupação com o aumento do número de mulheres encarceradas no País. Segundo ela,a prisão feminina “abate de forma diferenciada o núcleo familiar e social”. “Todos do sistema de Justiça deveriam refletir e se preocupar efetivamente com este quadro”, diz.
Leia a entrevista:
CartaCapital: O que mais a preocupa nessa representação?
Kenarik Boujikian: O mais preocupante, para mim, é que isso seja feito porque a minha ação revela uma forma de pensar o Direito. A independência judicial não é um privilégio dos juízes, mas um direito dos cidadãos para o correto funcionamento do Estado Democrático de Direito. Creio que todos os juízes estão obrigados, obrigados mesmo, a manter e defender sua independência no exercício da função jurisdicional como um dever ético.
CC: A não concordância com o seu pensamento pode levar a uma punição?
KB: Eu creio que não, embora seja isso o que o representante buscou, pois até a Lei Orgânica da Magistratura não permite punição pelo conteúdo das decisões judicias, salvo por improbidade.
Acho que a questão de fundo tem relação com a justiça neoliberal. Antoine Garapon (jurista francês) indica que esta tem critérios próprios, como a ‘segurança’, pronta a homogeneizar os processos judiciais, a prestação jurisdicional. Na área criminal, dirigidas a um grupo determinado que precisa de controle pela via punitiva.
Na cultura do encarceramento massivo, arraigada no cotidiano dos fóruns, qualquer pensamento dentro do marco punitivo que não seja daquela maioria momentânea soa como alerta contra alguém que coloca em perigo a ‘segurança’. Penso que, se for uma mulher a fazer esse rompimento, as questões passam a ter maior gravidade, pois o mundo penal ainda é dos homens e as relações são permeadas pelas relações de poder.
CC: Há poucas mulheres atuando na sessão criminal?
KB: O mundo do direito penal ainda é masculino, com tudo o que isso representa, e não só no tribunal. Veja nos seminários, congressos, a composição quase toda é de homens.
As mulheres ingressaram não faz tanto tempo assim na magistratura paulista. As primeiras entraram nos anos 80 e eram poucas. Agora, os concursos não são mais identificados. Esta foi uma proposição da Associação Juízes para a Democracia, da qual sou associada, e que foi acolhida.
Desde que essa norma foi aprovada, o número de mulheres que ingressam na magistratura aumentou significativamente, mas ainda somos poucas no tribunal. Na área penal, menos ainda. Vamos pensar que são 80 desembargadores homens na sessão criminal do TJ-SP e apenas três desembargadoras, nem 5% de mulheres na área penal.
O movimento feminista, e assim me considero, luta pela construção de maiores espaços para as mulheres na esfera dos poderes de Estado. Até pouco tempo, não tínhamos nenhuma mulher no Supremo Tribunal Federal, e o número ainda é pequeno nos tribunais superiores. Desse modo, os mesmos embates que acontecem com as mulheres no mundo, na vida, se repetem nos tribunais.
CC: Os desembargadores poderiam ter feito essa queixa em outros momentos, com casos semelhantes. Por que esse argumento de violação do princípio da colegialidade surgiu agora?
KB: De regra, as decisões dos processos que estão no tribunal devem ser tomadas por três desembargadores, no mínimo. Há normas que permitem que algumas decisões sejam realizadas individualmente. Eu decidi monocraticamente em alguns casos, ou seja, sozinha, em um primeiro momento.
São casos permitidos, de natureza cautelar, de acordo com o nosso ordenamento jurídico, por primeiro, com base na Constituição Federal, pois em todos os casos se trata do “status libertatis”, ou seja, do bem mais sagrado, que é a liberdade de um ser humano.
Mas, mesmo quando decidi individualmente, por cautela, esses mesmos casos foram levados para julgamento para o colegiado, que pode manter ou alterar a minha decisão.
Eu não sei o que motivou o momento da representação. Há outros casos, todos em sede cautelar, em que decidi da mesma forma, para a mesma hipótese, na mesma Câmara de julgamento. Inclusive o mesmo desembargador que me representou participou do julgamento.
Ele fez referência a 11 processos (um acabou sendo excluído), mas meus advogados, doutor Igor Sant’Anna Tamasauskas, doutor Pierpaolo Bottini e doutora Debora Rodrigues, esclareceram ao desembargador corregedor que foram 50 processos, nessas mesmas circunstâncias. O que não quer dizer, necessariamente, que estivessem ainda presos, pois era possível que tivessem sido soltos e essa informação ainda não estivesse no processo.
CC: O que a senhora decidiu nesses casos?
KB: A questão tem que ser colocada na perspectiva da prisão cautelar, aquela que não tem condenação definitiva, que pode ser alterada. Em todos os casos havia uma sentença condenatória com pena fixada. Em todos os casos eu era relatora e, no momento em que verifiquei que o tempo de prisão do indivíduo tinha alcançado a pena fixada pelo juiz na sentença, determinei a expedição de alvará de soltura clausulado e registrei no processo que assim o fazia por cautela, já que não havia informação de eventual soltura. Não é necessário que haja pedido das partes para que o juiz faça isso.
CC: Muito se fala sobre a superlotação do sistema carcerário. Ao proferir essas decisões, a senhora também levou isso em conta?
KB: Tenho plena consciência da situação do sistema carcerário. Temos uma população de cerca de 630 mil presos. Grande parte dessas pessoas está presa provisoriamente. A taxa de encarceramento provisório é da ordem de 40% no País, com um crescimento brutal do encarceramento feminino, a maioria jovens, com filhos, por crimes não violentos, a grande maioria por tráfico de entorpecente de pequena quantidade.
Nos últimos anos, o crescimento de mulheres presas é de cerca de 570%, e todos do sistema de Justiça deveriam refletir e se preocupar efetivamente com este quadro, assim como os demais agentes de poder estatal, Executivo e Legislativo.
Algo há de ser feito com o excessivo aprisionamento provisório, já que a prisão provisória é verdadeira antecipação de pena, com especial atenção para as mulheres, pois a prisão feminina abate de forma diferenciada o núcleo familiar e social. O ministro Ricardo Lewandowski alertou para a necessidade de alterarmos a cultura da prisionalização.
Entretanto, para a decisão, não levei em conta a superlotação carcerária. A prisão provisória, que é cautelar, não poderia se perpetuar, pois tem um limite. E o limite é o que o próprio Judiciário fixou como pena, ainda que pudesse ter alguma alteração, pois, se tinha recurso, o réu poderia ser absolvido, ter a pena diminuída, ter outro tipo de pena, ter a pena agravada.
É algo bem simples: chegou ao teto da prisão cautelar e, assim, mesmo que não tivesse superlotação, haveria que determinar a expedição de alvará.
Fonte: Carta Capital