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Não é de hoje que o Congresso e o Supremo Tribunal Federal flertam com o embate. De um lado, um Congresso a reboque da pauta do governo, enquanto diversos temas de interesse da população não são discutidos. De outro, uma Suprema Corte que, sob o pretexto de interpretar o texto da Constituição, acaba interferindo no dia a dia das pessoas, em assuntos ignorados pelo Parlamento. Drogas e aborto são dois exemplos. Vieram as crises política, econômica e a Operação Lava Jato para causar um terremoto nas relações entre Judiciário e Congresso. O ápice veio na semana passada com Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, que, simplesmente, decidiu dizer não a uma ordem do Supremo. Nunca o STF esteve sob tanta pressão, de todos os lados. “O Supremo tem atuado dentro dos limites, às vezes máximos, de sua competência e da interpretação da Constituição”, diz Joaquim Falcão, professor de Direito na Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro. Ele, que é um dos maiores especialistas em Suprema Corte no Brasil, afirma que o Tribunal hoje se tornou o “gestor das incertezas nacionais”.

ÉPOCA – O Supremo está à altura da crise que o país enfrenta?
Joaquim Falcão – 
Sim, está. Mas turbulências vão acontecer. A gente não pode prever o futuro.

ÉPOCA – Quanto se pode atribuir dessas decisões desencontradas do Supremo ao desenho institucional da Corte? E quanto se pode atribuir ao comportamento dos juízes que lá estão hoje?
Falcão –
 Esse foi um desencontro marcado para acontecer. Os dados do próprio Supremo mostram que em 2016 o Tribunal finalizou cerca de 80 mil processos. Ou seja, aproximadamente 8 mil por ministro. Humanamente impossível. O Supremo enfrenta a avalanche processual, fragmentando-se, em vez de ser seletivo. O Supremo é menos seu plenário e mais cada ministro individualmente. Precisa rever suas normas de decisão. Do contrário, conflitos entre ministros, turmas e plenário vão fatalmente acontecer.

ÉPOCA – Num caso inédito, a mesa do Senado, liderada pelo presidente Renan Calheiros, recusou-se a cumprir uma liminar do Supremo. O Tribunal sai menor após esta crise?
Falcão – 
Querer ser mais do que se é, é ser menos. Ambos, Supremo e Senado, quiseram ser maiores do que podem ser. Ambos saíram menores.

ÉPOCA – A crise política colocou o Tribunal num novo patamar neste ano, como se todos os temas de interesse do país tivessem de passar pela pauta do STF. É correto esse desenho institucional de uma Suprema Corte?
Falcão – 
O Supremo é o gestor das incertezas nacionais na economia, na cultura, na política. Hoje o Brasil é feito de divergências. O Supremo não está dando conta de tantas incertezas criadas fora dele. E pelas quais não é responsável. O Supremo decidiu a constitucionalidade do afastamento do senador Renan cercado por dois futuros: as delações da Odebrecht e a necessidade de aprovação de reformas econômicas legislativas. E isso pode ter influenciado a posição dos ministros. Gerou casuísmo e turbulência.

ÉPOCA – O Supremo ainda é uma referência de segurança jurídica?
Falcão – 
Esse foi um episódio que o Supremo vai superar. Não é o fim de uma instituição. Faz parte do percurso dela e espero que o Supremo retome sua sintonia com a sociedade.

ÉPOCA – No caso da liminar do ministro Marco Aurélio Mello para afastar Renan, ele decidiu citando o voto de ministros que depois não o acompanharam. Há uma contradição?
Falcão – 
O ministro Marco Aurélio, para dar essa decisão liminar, usou dois critérios. A fumaça do direito, ou seja, se será provável que esse direito fosse reconhecido, e o perigo da demora. Então, o que ele decidiu foi: quero decidir logo, porque há perigo em Renan na Presidência. O raciocínio foi de que havia uma probabilidade grande de que essa tese estivesse correta. Foi com base na probabilidade.

ÉPOCA – Há, muitas vezes, mudanças de pauta, prazos indefinidos de vista. Por que não há regras administrativas claras no Supremo?
Falcão – 
Porque a presidência do Supremo não toma uma decisão simples. Se o ministro prender o processo, ultrapassando o prazo do pedido de vista, coloca-se em votação, como já faz o STJ, por exemplo. São mecanismos técnicos. Vou dar dois exemplos. O ministro Luís Roberto Barroso já propôs que, uma vez ao ano, os ministros se reúnam para definir o que vão votar. E o resto que possa ser devolvido às instâncias inferiores seja automaticamente devolvido. Então, decidiram julgar 100 ou 200 casos, com uma pauta previsível e com uma concordância dos ministros sobre o que julgar e não julgar. É similar com o que ocorre nos Estados. Hoje, acontece muitas vezes de um advogado vir a Brasília e descobrir que o processo foi retirado de pauta.
ÉPOCA – Há algo a fazer sobre esses embates públicos entre ministros?
Falcão –
 É o próprio Supremo que tem de se reformar e decidir sobre seus comportamentos. Existem propostas de limitar o tamanho dos votos. São pequenas medidas que podem fazer a diferença. Não existe mais um modelo único para os Supremos no mundo global. Fomos pioneiros com a TV Justiça. Na semana passada, a Inglaterra seguiu nosso caminho. Foi transmitida ao vivo a sessão da Suprema Corte sobre a legalidade do Brexit. Diante da liberdade de expressão, de imprensa, acadêmica, das mídias sociais, da tecnologia, democratizou-se o conhecimento sobre como se faz Justiça. Os judiciários têm de lidar com um mundo onde as portas da informação jurídica não estão mais fechadas. Brasília não está mais isolada. Brasília é aqui, em homenagem a Caetano Veloso. Brasília está no celular de cada um.

ÉPOCA – Nos últimos meses, diversas casos “fora da curva” vêm sendo julgados pelo Tribunal. Os exemplos são inúmeros: prisão de senador em flagrante, afastamento de presidente da Câmara e Senado, discussão sobre aborto, guerra fiscal entre estados. Como o senhor vê essa nova fase do Supremo?
Falcão – 
O ativismo que preocupa a opinião pública é se a incerteza administrativa e a politização explícita de alguns ministros poderão impedir o andamento de operações como Zelotes, Lava Jato e seus desdobramentos, como a Pixuleco, Calicute, Aletheia. Ou adiá-los e prescrevê-los.  Essa politização, a partidarização de ministros, corrói a confiança no Supremo e a crença na supremacia da Constituição. Faz mal a todos. Só existiria um ativismo do Supremo se houvesse uma clara opção em conquistar os demais Poderes. Não é o caso. O Supremo tem atuado dentro dos limites, às vezes máximos, de sua competência e da interpretação da constituição. O Supremo é poderoso porque é raro. O ativismo diz mais respeito à frequência do que à qualidade de suas decisões. É um ativismo quantitativo. Hoje são 60 mil processos em estoque.

ÉPOCA – Há exemplos de outros países com uma Suprema Corte com papel institucional similar ao do STF no Brasil?
Falcão – 
A ascensão do Supremo como ator político decisivo não é exclusiva do Brasil. O Supremo americano decidiu a eleição de Bush versus Gore [que determinou a vitória de George W. Bush na eleição de 2000, numa controvérsia sobre a contagem de votos]. O Tribunal constitucional da Alemanha decidiu a legalidade dos empréstimos que salvaram a Espanha. É fenômeno mundial. Temos de nos acostumar. A legalização da maconha tem sido feita ou pelo Judiciário, ou pelo Parlamento, ou pelos plebiscitos. Não é, pois, por si só, um indicador de ativismo de nosso Supremo.

ÉPOCA – É apropriado que um caso tão relevante para o país, como é o aborto, seja discutido por uma Turma do STF, e não pelo Congresso? Não houve atropelo?
Falcão – 
A decisão sobre o aborto diz respeito à questão sobre até onde o Estado pode interferir em nossa vida privada. Há escolhas existenciais em que o Estado tem de ficar de fora. Como afirmou o ministro Barroso na Academia Brasileira de Letras: quem, por religião ou convicção, não aceitar o aborto não lhe está obrigado. E nada impede que o Congresso tenha outra posição. Tanto é que o Congresso já criou comissão especial para discutir o aborto no país. A interação entre os Poderes vai continuar.

Fonte: revista Época